Nos anos 70, um bairro de Nova York estava convivendo com o medo: um assassino desconhecido estava raptando, esfaqueando e castrando crianças. Entre acusações de racismo e pouquíssimas pistas para seguir, a polícia ficou em um verdadeiro beco sem saída.
Essa é a versão escrita do episódio #24 - Charlie Chop-off:
No final do século XIX e início do século XX, o bairro do Harlem era multiétnico, com a presença de judeus, italianos e latinos, mas principalmente da comunidade negra. A migração em massa de negros para a área começou em 1904: enquanto outras áreas de Nova York estavam dificultando as condições para negros, no Harlem eles conseguiam construir e viver mais facilmente porque os empresários do ramo imobiliário eram em sua maioria, negros. Em 1910, a população do Harlem era composta por cerca de 10% de negros, e esse número chegou em 70% em 1930.
Em 1929, ocorreu a Grande Depressão, a maior crise econômica da história dos Estados Unidos. Com ela, muitas pessoas perderam o emprego, a renda e a casa onde moravam. O racismo, que já existia, ficou ainda pior. Mesmo quando a economia melhorou, a população negra do Harlem sentia que o governo não investia ali como faziam em outros locais, com menos opções de educação, saúde e lazer.
Harlem nos anos 30
O Harlem ficou marcado por grandes protestos contra o racismo e contra a violência policial contra a população negra: em 1935, uma criança negra foi morta pela polícia em um suposto assalto. Isso ocasionou um protesto violento, com mais de 600 lojas depredadas e três pessoas mortas. Em 1943, um policial atirou em um homem negro, e isso gerou um tumulto tão grande que foram precisos mais de 6 mil agentes de lei para acalmar as coisas. Nesse protesto, 500 pessoas foram presas, 6 morreram e 185 ficaram feridas.
Nos anos 60, a população negra dos Estados Unidos se levantou para protestar por igualdade e por mais direitos, liderados por Marin Luther King e por outros ativistas como Malcolm X. O assassinato deles em 1965 e 1968, respectivamente, causaram uma nova onda de protestos, não apenas no Harlem, mas em todo o país.
Homem sendo preso durante o protesto de 1943
Os anos 70 foram os mais difíceis para o bairro, devido a uma verdadeira epidemia de violência, com aumento das taxas de roubos, uso de drogas e assassinatos. Muitas pessoas acabaram se mudando para buscar condições melhores de vida em outros bairros, e o Harlem perdeu quase um terço da sua população. E foi justamente nessa época violenta que um misterioso assassino começou a atacar.
Roubos, drogas e assassinatos tomaram conta do Harlem nos anos 70
No dia 9 de março de 1972, foi descoberto um corpo em cima do telhado de uma casa na East 121st Street: era de uma criança negra de apenas 8 anos chamada Douglas Owens. Ele tinha sido esfaqueado 38 vezes no pescoço, no peito e nas costas, além de ter seu pênis quase todo removido. Havia sinais de que ele poderia ter sido abusado, e o assassino tinha levado seus sapatos. A violência do ataque foi tanta que assustou até as autoridades, mas sem uma testemunha ou evidência o caso logo esfriou.
No dia 20 de abril, um garoto de 10 anos que não teve seu nome divulgado foi esfaqueado, abusado e teve seu pênis arrancado. Novamente o corpo estava em um telhado, e a vítima estava sem sapatos. Surpreendentemente, ele sobreviveu ao ataque e, a polícia encontrou o órgão genital dele em um parque próximo. Algumas fontes dizem que estava de posse de um grupo de crianças.
O garoto atacado disse que foi abordado por um homem que se identificou como Michael e prometeu dar a ele 50 centavos se ele o seguisse. Quando foi colhido seu depoimento, a vítima descreveu o homem que o atacou com detalhes: ele tinha mais ou menos 30 anos, alto, magro, hispânico ou italiano, pele morena e cabelos escuros. Além disso, ele mancava, tinha uma verruga no lado esquerdo do rosto, manchas pretas no queixo e marcas de varíola na pele.
Retrato falado do suspeito
No dia 23 de outubro, Wendell Hubbard de 9 anos (algumas fontes dizem 7) estava brincando no quintal de casa quando desapareceu. Sua mãe reportou o sumiço do garoto para a polícia. Horas depois, 3 garotos encontraram o corpo dele no telhado de uma casa que ficava a seis quarteirões de onde Douglas Owens havia sido morto. As características do ataque e da vítima eram as mesmas: uma criança negra, esfaqueado 17 vezes no pescoço, tórax e abdômen e seu pênis foi cortado.
Em março de 1973, Luis Ortiz, um menino porto-riquenho de 9 anos, desapareceu quando voltava de um mercadinho do bairro. Ele foi encontrado algumas horas depois em uma escada que levava ao porão de uma casa na West 106th Street, uma quadra de distância de onde a criança que sobreviveu foi atacada. Como nas outras vítimas, ele foi esfaqueado 38 vezes e seu pênis foi arrancado. Algumas testemunhas disseram que viram um homem suspeito andando com a criança, algumas disseram que ele era latino, outras disseram que era negro.
Wendell Hubbard e Louis Ortiz
A população do Harlem estava com medo de deixar suas crianças saírem sozinhos. Uma mulher disse ao New York Times: "Você costumava ser bastante flexível quando seu filho não voltava para casa depois da escola, pensando que ele foi para a casa de alguém para brincar, mas agora você liga para essa pessoa imediatamente para ver se seu filho está lá". Foram marcados protesto e reuniões públicas para debater o caso, e as crianças recebiam ordens estritas para não falar com estranhos.
A onda de assassinatos também afetou as crianças, com muitas relatando pesadelos recorrentes e medo de sair de casa. Algumas crianças mais velhas assustavam as outras mancando como o suspeito ou até fingindo estarem sendo atacadas. Foram as próprias crianças do bairro que deram o apelido ao assassino: Charlie Chop-off (Charlie Corta-fora em tradução livre).
Os responsáveis pelo caso foram os Sargentos Edmund Klan e Gerald McQueen. Eles criaram uma força-tarefa na qual mais de 50 detetives chegaram a ajudar na investigação. Eles distribuíram centenas de retratos-falados, inclusive com o homem usando diferentes acessórios e com diferentes cortes de cabelo, além de disponibilizarem uma linha com a central para denúncias sobre o caso. Foram mais de 300 dicas, 150 pessoas interrogadas, 10.000 registros de crimes sexuais infantis revistos e ajuda da Interpol, mas não encontraram nada.
Em agosto de 1973, Steven Cropper, de 8 anos (algumas fontes dizem 7), saiu para brincar e desapareceu. O caso dele foi um pouquinho diferente: embora o assassino tenha levado os sapatos e deixado o corpo em um telhado, ele não foi perfurado com uma faca, mas teve cortes profundos nos membros superiores e no peito, em forma de X. Além disso, o ataque foi fora do Harlem, ele não foi agredido sexualmente e seu órgão sexual estava intacto. Apesar disso, testemunhas disseram que viram um homem com as características do assassino saindo do prédio, e a polícia incluiu ele como mais uma vítima.
Moradores do Harlem pedindo maior proteção policial
Um pouco antes da morte do Steven Cropper, os moradores relataram que havia um homem com comportamento suspeito andando pelo bairro. O homem, identificado como Luis Alberto Gonzalez foi preso e interrogado, pois suas características batiam com algumas descrições.
Ao saberem que havia um suspeito preso, uma população enfurecida queria invadir a delegacia e um tumulto começou. Várias equipes de reportagem foram para o local e os policiais tiveram que chamar reforço. No fim das contas ficou concluído que Luis não tinha nada a ver com os casos, mas ele precisou sair da delegacia disfarçado de policial para não ser linchado.
Ainda no mês de agosto, a polícia prendeu um homem chamado Daniel Olivo sob a acusação de agredir sexualmente um menino de 5 anos em um parque na região do Bronx. O promotor público do Bronx disse que Daniel se encaixa na descrição do suspeito dos assassinatos no Harlem: ele era hispânico, magro, tinha o rosto cheio de marcas de varíola e mancava. Apesar da aparência bater com a descrição da vítima que sobreviveu, ele tinha álibis comprovados para todos os crimes, inclusive nem estava na cidade em alguns deles.
Sem nada concreto, a polícia estava sendo muito criticada pela demora em conectar os crimes e em não investigar de forma mais incisiva. Muita gente sugeriu que a falta de interesse por resolver os crimes estava ligado ao local e ao fato de as vítimas serem negras.
Moradores e curiosos se aglomeram enquanto Luis Alberto Gonzalez estava na delegacia
No dia 15 de maio de 1974, um menino porto-riquenho surgiu gritando pela vizinhança, dizendo que um homem tinha tentado sequestrá-lo. A população conseguiu cercar o sequestrador e deter ele até a chegada da polícia. Na delegacia, ele foi reconhecido como Erno Soto, um homem com histórico de violência e de crimes, já tendo cumprido 11 anos na prisão por roubo e posse de drogas. Ele também estava internado no Hospital Estadual de Manhattan como dependente de heroína e com o diagnóstico de esquizofrenia.
Erno era o suspeito perfeito: o hospital não ficava longe de onde alguns dos corpos foram encontrados, e ele tinha parentes na área onde outros meninos foram mortos. Ele aparentemente tinha ódio de crianças negras, isso porque sua ex-esposa se casou e teve um filho com um homem negro. A polícia percebeu que o nome de Erno Soto já havia sido comentando antes: duas semanas depois que Douglas Owens foi atacado, a polícia recebeu uma denúncia anônima que acusava ele de ser o assassino, mas por algum motivo essa informação não foi checada na época.
Sob custódia, ele confessou o assassinato de Steven Cropper, alegando que Deus havia dito que ele deveria transformar meninos em meninas. Os funcionários do hospital disseram que Erno sofria de sintomas psicóticos, incluindo alucinações, delírios e distúrbios do pensamento. A polícia tentou fazer uma cronologia para descobrir se os outros ataques aconteceram nos períodos em que ele estava internado, mas os funcionários do Hospital admitiram que ele conseguia escapar do local, passar a noite fora e voltar pela manhã.
Mesmo com todos esses detalhes, a polícia não tinha nenhuma prova física contra ele, e o menino que sobreviveu não tinha certeza se era a mesma pessoa que atacou ele um ano antes. No julgamento da morte de Steven Cropper ele foi considerado mentalmente incapaz e enviado de volta para o hospital em um esquema mais sério de vigilância. Após isso, os assassinatos pararam.
Em 1975, a autora Barbara Gelb escreveu sobre o caso no livro "Na Trilha do Assassinato", e se referiu à Soto pelo pseudônimo de "Miguel Rivera". Posteriormente, alguns jornalistas e autores que escreveram sobre o caso acabaram confundindo essa informação e relatam que o suspeito realmente se chamava Miguel, e não Erno, e por causa disso algumas informações foram se perdendo. Por envolver crianças, muitas informações ficaram sigilosas, e até hoje não se sabe o que aconteceu com Erno Soto. O caso ainda está aberto, mas sem solução até hoje.
Erno Soto saindo da Suprema Corte de Manhattan em uma cadeira de rodas e com o rosto coberto: essa é a única foto conhecida dele
• FONTES: The New York Times, Front Page Detectives, Murderpedia, Rob Gavagan, They Will Kill, 10 Minute Murder.
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