#64 - A Besta de Gévaudan | MISTÉRIOS
- Rodolfo Brenner
- 14 de ago. de 2023
- 11 min de leitura
No século XVI, uma pequena região da França foi aterrorizada pela presença de um animal desconhecido com destreza, inteligência e apetite nunca antes vistos. A história é tão extraordinária que muitos acreditam ser uma lenda, entretanto, documentos, registros e pinturas indicam que algo realmente aconteceu.
Essa é a versão escrita do episódio #64 - A Besta de Gévaudan:

O caso aconteceu na região de Gévaudan, uma área administrativa que ficava localizada onde hoje é a região de Lozère, no sul da França. Gévaudan era uma região pacata, conhecida por ser passagens de muitas trilhas de peregrinação. No século XVI aconteceram as Guerras Religiosas Francesas, uma guerra civil entre católicos e protestantes que durou 36 anos. Por causa do conflito, a região teve que dar todo seu dinheiro para a Igreja Católica. Resultado: a pobreza tomou conta do local, e muitos moradores acabaram morrendo de frio e fome. Foi nesse contexto que surgiu mais uma ameaça para os moradores.
O primeiro ataque foi em 1764: uma jovem chamada Marie-Jeanne estava cuidando do gado na floresta de Mercoire, perto da cidade de Langogne, quando viu algo que ela descreveu "como um lobo, mas não um lobo". Segundo ela, a criatura era do tamanho de um bezerro jovem, largo, com garras grandes, uma boca enorme com caninos salientes e olhos vermelhos faiscantes. A criatura foi para cima dela, porém, os bois do rebanho a defenderam e conseguiram afugentar o bicho.
Quando Marie voltou para a cidade, contou o que tinha acontecido e mostrou as marcas do ataque no seu vestido. Entretanto, ninguém levou o relato a sério e acreditavam que ela tinha sido atacada por um lobo: Lobos são animais carnívoros e naquela época não era incomum que eles atacassem uma pessoa, porém, eles tinham preferência pelas criações de animais, já que vacas e ovelhas eram muito mais fáceis de caçar do que um ser humano. O caso tinha tudo para ser mais um ataque de animal selvagem em busca de alimento, até que aquilo atacou novamente, mas dessa vez ele fez uma vítima fatal: uma menina de 14 anos chamada Jeanne Boulet, encontrada morta perto da da vila de Les Hubacs.

Mapa da França com a localização de Gévaudan (em vermelho)
Nos meses seguintes aconteceram mortes e mais mortes: em agosto, a Besta atacou uma garota de Puy-Laurent, três adolescentes da aldeia de Chayla-l'Évêque, uma mulher de Arzenc, uma menina da aldeia de Thorts e um pastor de Chaudeyrac. Todos foram multilados. Em setembro, uma garota de Rocles, um homem de Choisinet e uma mulher de Apcher desapareceram, e só encontraram pedaços rasgados das suas roupas. Em outubro, um jovem de Pouget retorna à aldeia apavorado após ter sido atacado pelo animal. O que ele não percebeu é que seu crânio estava parcialmente exposto pelo ataque. O mesmo aconteceu com um menino de 13 anos, apenas dois dias depois.
No fim do mês, uma jovem de vinte anos foi encontrada morta perto de Saint-Alban. Segundo as testemunhas, a Besta "bebeu todo o seu sangue e devorou suas entranhas". O animal acabou ganhando o nome de Besta de Gévaudan. Aparentemente ele preferia atacar mulheres e crianças, mas isso não era regra fixa. Ele preferia atacar a região da cabeça e do pescoço, principalmente na garganta. Algumas vítimas foram encontradas sem cabeça e outras foram completamente dilaceradas.
Em uma noite de outubro, um camponês da aldeia de Julianges chamado Jean-Pierre estava arrumando fardos de palha em seu celeiro quando avistou uma sombra passando pela pequena janela do local. Jean-Pierre tinha um rifle — algo raro para sua classe — e não pensa duas vezes: ele atira na Besta. Ele acerta o animal, que cai, levanta, balança a cabeça e parece procurar de onde teria vindo o tiro. Jean dá mais um tiro, que dessa vez faz a Besta partir em retirada. Segundo ele, a criatura fez um som pavoroso quando foi atingida.

Representação da Besta atacando (Bibliothèque nationale de France)
Por conta dos ataques, o medo tomou conta de Gévaudan: ninguém queria mais deixar suas casas e correr o risco de ser devorado pela Besta. Por causa disso, as colheitas foram negligenciadas, os animais não pastavam mais e as estradas ficaram mais desertas do que nunca. Nesse momento a história já estava se espalhando e chegou aos ouvidos do Capitão Duhamel, que já era conhecido por ter matado um grande lobo que também tinha causado problemas na região. Ele decidiu tomar uma atitude, reunindo camponeses corajosos para cercar e matar o animal. O grupo fazia rondas diárias e chegou a ter mais de mil pessoas.
Certa vez o grupo foi avisado que a Besta estava se escondendo em uma vila, observando um jovem pastor de gado. A Besta notou a presença deles e saltou em direção a um bosque, onde cerca de 100 homens a seguiram, atiraram e acertaram várias vezes, porém, ela sempre se levantava. De repente, ela correu e sumiu dentro da floresta. No dia seguinte, 200 pessoas vasculharam a área na certeza que achariam seu corpo, mas a única coisa que encontraram foram duas mulheres que contaram terem visto a criatura mancando, mas bem viva.
Dois dias depois tiveram novos ataques: um jovem foi resgatado com ferimentos graves e todo ensanguentado, assim como uma criança que tinha sido mordida no rosto e no braço. O mais grave dos casos foi o de uma garota atacada enquanto ordenhava suas vacas: seu cadáver foi encontrado completamente estraçalhado. - Após a volta dos ataques, muitas das pessoas que estavam no grupo de busca desistiram: para eles, não havia mais o que fazer, e era uma questão de tempo até que a Besta impiedosa devorasse todos.

Representação de uma das caçadas contra a Besta de Gévaudan
Com o medo e a histeria maiores do que nunca, chegam novas descrições da Besta de Gévaudan: ela teria pêlos ruivos, orelhas curtas e cauda longa. Alguns diziam que suas patas traseiras estavam cobertas de cascos, como um cavalo. Além disso, ela tinha inteligência e agilidade que não pareciam com a de um simples animal. Começaram também relatos de avistamentos da mesma criatura em dois locais distantes, o que poderia indicar que havia mais de um animal. As mães passaram a colocar medo nos filhos dizendo que, caso não se comportassem, seriam levados pela fera.
As notícias sobre a Besta chegaram em Paris e na corte francesa: o Rei Luís XV ordenou o envio de tropas e a construção de um quartel general para combater aquele animal. As tropas ficaram na cidade de Saint-Chély, para onde também foram chamados os melhores atiradores da região, além de uma recompensa de seis mil libras para quem matasse a Besta.
Foi realizada uma verdadeira caçada que durou uma semana, mas eles não encontraram o animal. Assim que as tropas voltaram para o quartel, a Besta atacou e matou quase 10 pessoas na região de Sainte-Colombe. Com um novo fracasso, começou uma forte crença de que a Besta seria algo demoníaco, enviado para testar a fé dos franceses. O Bispo de Mende escreveu uma carta aos padres falando sobre a fera e pedindo o máximo de orações possíveis. E enquanto os habitantes faziam orações, a Besta fazia mais vítimas, inclusive em plena luz do dia: no dia 6 de janeiro de 1765, ela arrastou uma mulher chamada Delphine Courtiol, na aldeia de Saint-Méry. Segundo os registros, essa já era a sua vítima de número 60.

Luís XV da França (1710-1774)
Em janeiro de 1765, um grupo de crianças estava pastoreando um rebanho nas montanhas próximas da aldeia de Chanaleilles. Como estavam com medo de que a Besta aparecesse, eles se armaram com paus com lâminas de faca na ponta. De repente, a Besta realmente aparece, saindo de trás de um arbusto.
Jacques Portefaix, um garoto de 12 anos, toma a frente para proteger seus amigos. A besta avança e agarra uma das crianças pelo pescoço: o pequeno Joseph Panafieux, de oito anos. Com muita coragem, as outras crianças passam a esfaquear o animal, que solta Joseph, mas volta a ataca-los e deixa mais alguns machucados. Seguindo as ordens de Jacques, todos passam a bater na criatura, principalmente na região da face. Ela tenta levar mais um menino do grupo, mas é encurralada e abandona e foge, bastante machucada.
O relato rapidamente se espalha e chega aos ouvidos do Bispo de Mende, que envia uma carta para o rei. O rei decide dar trezentas libras para cada uma das crianças, além de garantir que Jacques recebesse educação, moradia e comida pagas pelo estado. Ele foi mandado para uma irmandade de cavalheiros onde foi criado e entrou para o exército real. A história novamente se espalhou na França, e cavalheiros de todo o país se ofereceram para matar a Besta de Gévaudan, com a recompensa aumentando para 9.400 libras. Novamente, foi o Capitão Duhamel que chamou os cidadãos para lutar. Houveram algumas mobilizações, mas ninguém conseguiu parar os ataques.

Representação de Jacques Portefaix e seus amigos afastando a Besta
Em fevereiro de 1765, um homem apareceu no Palácio de Versalhes e apresentou o seu trabalho para o Rei Luís XV: ele se chamava Denneval e tinha vindo da região da Normandia. Ele disse ser um caçador habilidoso, que já teria matado mil e duzentos lobos. O rei aceitou e ele jurou que mataria a Besta e traria ela empalhada para Versalhes. Denneval foi para Gévaudan com seu filho e seis cães de caça. Ele demorou cerca de 20 dias para chegar até a vila de Saint-Flour, enquanto a Besta tocava o terror no local, matando uma pessoa por dia.
No início os camponeses acharam que Denneval era um tanto “lento”, já que ele passava mais tempo observando, estudando o campo e treinando seus cães ao invés de sair para caçar, porém, como ele tinha sido mandado pelo próprio rei, só restava aos camponeses manter esperança viva. Houve um contratempo em relação ao Capitão Duhamel, já que Denneval pediu para que ele retirasse seus homens do local, e isso gerou discussões que duraram quase um mês. Enquanto isso, a Besta continuava matando pela região, e segundo as fontes, “em lugares tão distantes que a rapidez de suas viagens não pode ser explicada”.
Enquanto as caçadas de Denneval também não davam em nada, as histórias sobre a Besta de Gévaudan saíram da França e chegaram no maior rival do país: a Inglaterra. Alguns jornais ingleses aproveitaram para zombar dos franceses e de suas derrotas para o animal. Luís XV ficou furioso quando ficou sabendo das manchetes na Inglaterra e mandou para a região o Sr. Antoine de Bauternep para que ele matasse e trouxesse o animal. Bauternep era o primeiro portador de arcabuz real e um funcionário de confiança do rei.
Os camponeses, que já não tinham gostado de Denneval, gostaram menos ainda de Bauternep, isso porque ele tratava todo mundo como seu empregado, sempre pedindo para alguém carregar suas coisas ou cuidar dos seus cachorros. Durante três meses ele tentou caçar a criatura, sem sucesso. Em setembro, ele realizou uma emboscada no Bosque de Chazes, um lugar conhecido pela presença de lobos, até que avistou uma criatura muito maior correndo na sua direção. Antoine atirou duas vezes e a criatura caiu morta.
O corpo dela foi levado para Saugues, onde foi realizada uma necropsia: foi constatado que a criatura tinha um 1,70 m e pesava 60 kg. O médico legista disse que a criatura era sim um lobo, porém, Bauternep chamou algumas crianças que tinham visto a Besta recentemente e obrigou elas a confirmarem que sim, era ela. O cadáver do animal foi empalhado e enviado para Fontainebleau, enquanto Antoine foi nomeado Grã-Cruz da Ordem de Saint-Louis, além de ganhar uma pensão de mil libras pagas pela coroa. Parecia que tudo finalmente tinha acabado e Gévaudan estava livre das garras da Besta, mas não foi bem assim que aconteceu.

Cadáver da suposta Besta em Fontainebleau
Em novembro, começou uma nova série de ataques, sendo que as primeiras vítimas foram duas mulheres. Logo os moradores de Gévaudan voltaram a ver a Besta, e a partir de janeiro de 1766, foram quase diários. Os moradores voltaram a pedir socorro para a corte, porém, a própria não queria admitir um erro como esse e passou a ignorar os camponeses. Em junho de 1767, foi realizada uma peregrinação com muitas orações para espantar o que quer que fosse aquela criatura. Durante esse encontro, o Marquês d'Apcher, um dos senhores de Gévaudan, organizou uma nova caçada.
Entre os caçadores estava um homem chamado Jean Chastel, de 70 anos, uma idade muito além da expectativa de vida da época. Segundo as fontes, Jean era um homem muito honesto e correto, conhecido por sua piedade com os outros. A caçada estava acontecendo perto de Saugues, quando Jean viu a Besta vindo em sua direção. Ele estava empunhando uma arma, carregada com duas balas sagradas: com apenas um tiro, o animal caiu no chão. Seu corpo é levado para o castelo de Besques e examinado por especialistas que confirmaram: não era um lobo.
O feito foi tão impressionante que Jean levou os restos do animal por diferentes partes da França. Como não foi empalhado, o corpo acabou apodrecendo e foi enterrado, selando o mistério sobre quem realmente seria aquele animal. No total, os registros indicam que a Besta atacou 247 pessoas atacadas, deixando 119 mortos e 53 feridos.

Monumento em homenagem a Jean Chastel
Mas afinal, o que pode ter sido esse misterioso animal? A primeira teoria diz que, na verdade, a Besta não era um lobo, mas sim vários lobos. Como falamos anteriormente, ataques de lobo não eram raros, e é possível que lobos famintos tenham atacado em diferentes locais. As descrições estranhas da criatura podem ser de lobos com doenças de pele ou com alguma deformidade.
Essa hipótese é corroborada pelo livro "Monsters of the Gévaudan: The Making of a Beast", do autor Jay M. Smith, e também pelo relatório "The Fear of Wolves" do Instituto Norueguês para Pesquisa da Natureza, que fala sobre uma superpopulação de lobos na época. Nessa teoria, os animais que Antoine de Bauternep e Jean Chastel mataram eram lobos grandes. Também existem registros sobre mais de 100 lobos abatidos na época, o que indicaria como esse problema realmente existia.

Uma alcatéia de lobos
A segunda teoria é de que a Besta na verdade seria um outro animal: as descrições dela não são homogêneas, abrindo espaço para interpretações de que ela seria uma hiena, um leão ou ainda um animal híbrido, como o Cão-lobo. Entretanto, essa teoria tem alguns problemas: segundo especialistas, animais africanos não aguentariam as temperaturas frias do inverno europeu.
A terceira teoria é de que não seria um animal, mas sim um serial killer: parece algo que saiu direto de um filme de suspense, mas alguns acreditam que a Besta na realidade seria um assassino em série que usava a pele de um animal para atacar suas vítimas. Alguns ainda vão mais além e dizem que não se tratava de só um, mas de um grupo de assassinos.
A quarta teoria é de que algum animal pode sim ter atacado algumas pessoas, mas que houve uma histeria coletiva em volta do caso. Como a Besta de Gévaudan acabou ganhando aspecto de lenda, é difícil dizer se todas as informações que temos são corretas ou não, deixando apenas o imaginário seguir em frente. E por fim, temos as teorias sobrenaturais: a de que a Besta na realidade era um animal demoníaco, enviado para testar a fé do povo francês, ou ainda um lobisomem, e por isso se comportava às vezes como humano. As balas sagradas usadas por Jean seriam uma das provas de que a Besta realmente não seria algo natural.

Algumas pessoas acreditam que a Besta era algo sobrenatural
A Besta de Gévaudan já apareceu em muitas mídias, incluindo filmes, documentários, jogos e séries, incluindo uma aparição na série Teen Wolf como um dos antagonistas. Existem também algumas localizações e monumentos que relembram a história: dentre eles, existe o Museu da Besta de Gevaudan, em Saugues. A exibição é composta por 22 cenas recriadas que contam a história da Besta, desde a sua aparição até a sua morte.
Também existem dois monumentos relacionados com a lenda: a primeira é uma homenagem a Jean Chastel, o homem que matou a Besta, e fica localizado em La Besseyre-Saint-Mary. A segunda é uma estátua de Marie-Jeanne Valet, uma jovem de 19 anos que foi atacada e enfiou uma lança no peito da criatura. A estátua foi erguida em Auvers em 1995. Uma das coisas mais interessantes relacionadas com a Besta é o santuário natural "Os Lobos de Gévaudan", que se dedica à preservação de várias espécies de lobo, incluindo o lobo europeu, que quase foi extinto no território francês.

Santuário de Lobos em Gévaudan
• FONTES: The Public Domain Review, La Bête du Gévaudan, The Collector, Smithsonian, Atlas Obscura, The Good Life France, France Today, Wolfology: A Look at Heresies, Old and New, All That's Interesting, Amusing Planet.
Komentar